quarta-feira, 29 de novembro de 2017

INCONSCIENTE COLETIVO E CONSCIÊNCIA NEGRA - Herança Imaterial e Material

                                                                                                                                     




Em 2011 Artur Bispo do Rosário fez 100 anos. Nasceu em Japaratuba, Sergipe, cidade que guarda a mística de ser frequentada por egípcios e fenícios, que atravessavam o Atlântico em uma América pré-colombiana, para cá deixar oferendas aos seus deuses. Fui em 2011 em Japaratuba pesquisar a cidade natal de Bispo, que não se via como artista, mas um missionário para o encontro com o divino. O lugar tem uma grande presença do povo negro, e fortes manifestações para o Orixá Xangô. Bispo com o mesmo nome do grande rei Artur, entrou na Marinha e foi muito jovem para o Rio de Janeiro. Talentoso construtor e pugilista, é expulso da corporação por brigas e vai trabalhar com a família Leone, famosa por seus juristas. Os surtos psicóticos se sucedem, a esquizofrenia se instala definitivamente, o que leva a seu internamento no manicômio Juliano Moreira.  No lugar começa a construir sua obra plástica, bordando os lenções com longos textos, encapsulando com revestimentos de fios de linhas têxtil os mais variados objetos, ordenando outros tantos em obras do mais apurado conceito de acumulação, instalando e criando sua obra prima: O Manto para o seu grande encontro com Deus.
O manicômio é transferido para Jacarepaguá, onde mais tarde a Dr. Nise da Silveira vai começar o trabalho com arte, o que leva a criação do Museu do Inconsciente Brasileiro. Bispo se recusa a ir para as novas instalações, e consegue permanecer no antigo prédio, que vazio, permite que ele ocupe vários espaços com suas criações, e quem quisesse vê-las tinha de imaginar a cor do seu semblante. Com sua morte, sua obra tornou-se patrimônio imaterial do povo brasileiro, dando origem na antiga colônia, ao Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Sem querer ser artista, Bispo alcança a maior ambição destes: a eternidade. 
Mestre Didi, realiza sua obra plástica com o profundo conhecimento da cultura Yorùbá, focado na cosmologia de Nàná e seus filhos, Obàlúaiyé, Òsányin, Òsùmàrè e Ewá. Nada há em suas esculturas, que não seja posto em acordo com o que é próprio desse universo simbólico. Cada forma, desenvolvimento, métodos, materiais, seja uma conta ou um monumento, é uma escolha consciente, precisa com seu vasto conhecimento ritualístico, e da cultura do seu povo, oriundos de Kétu, sendo sua família Asipá de uma casa real, que portanto, era o que mais desenvolvido e preciso havia a nível de construção material e espiritual na cidade africana. Esses preciosos artificies, artistas e sacerdotes, ancestrais do Mestre, vão lhe possibilitar um acumulo cultural de uma qualidade e preciosidade indiscutível, haja visto a grande influência que exerceram na formação religiosa e cultural do povo brasileiro.
Sua vasta obra, incluem não apenas criações plásticas, mas um legado escrito e editado em livros, filmes, afoxé, escola e o Ilê Àse Asipá, o terreiro de culto aos Éguns que deixou assentado em solo soteropolitano, em ótima sintonia com suas filhas e netos. Sua segunda e definitiva esposa, a antropóloga argentina Juana Albein dos Santos, é sua companheira dessa produção, que o assiste por mais de meio século, e que detém por hora a posse legal  de suas esculturas e direitos autorais. Juanita, como é conhecida a antropóloga, que em tese de doutorado na Sorbonne escreve um tratado fundamental sobre a cultura Yorùbá, “Os Nagô e a morte – Pàde, Àsèsé e o Culto Égun na Bahia”, impossível sem a colaboração e facilitação de Mestre Didi, é indiscutivelmente uma grande intelectual, pois assim Éguns e Orixás quis.
Torço para que as diferenças entre seus herdeiros sejam equacionadas e nós todos amantes das artes, que compreendemos o quanto é fundamental  seu legado artístico, cultural e religioso, vejamos surgi um organismo muito mais forte para a preservação da contribuição de ambos,  em um acerto de comum acordo, de sua parceira, suas filhas e netos. Vai valer a pena a superação, feita de tanta luta contra a dor racista, mas sobretudo pela enorme labuta para construir essa herança africana no Brasil e mundo.     



Memória, o rei do pop e o rei do conceitual



A memória nacional pode estar em festa, em 2017, apesar da loucura total política, com suas cascatas de podridões que não param de suturar, podemos pensar em outra loucura, essa mais produtiva: Um pais que recebeu a 100 anos grandezas com as do Pernambucano Aberlado Barbosa, o Velho Guerreiro, do “Aquele abraço” do Gilberto Gil, o Chacrinha um verdadeiro Rei do Pop, responsável por uma carga de contaminação gigantesca da cultura de massas, no Brasil. O cara que mandou girar o dinheiro da música.

E a sofisticação intelectual de Mestre Didi, que pode lidar com procedimento sacerdotais e artístico, do mais puro que há na cultura Yorùbá na Bahia, Brasil e Mundo, e torna-se um dos grandes enigmas de valor de obra de arte do circuito planetário, por ser um oásis frente a geleia de simulacros vendido as massas.   Seu emperre pode parar a circulação do dinheiro no sistema das artes, pois Picasso mirou a arte africana, fez seu astronômico valor e previu essa circulação no futuro, que já é nosso presente. 

Acreditava Picasso que a África por tratar da produção do que vem do berço, da transformação em o que nos fez humanos, teria uma profunda densidade midiática. Mestre Didi é um rei desse sistema, nascido na Bahia, filho de tradicionais sacerdotes e descendente de uma família real de Kétu, a Asipá. Eu prefiro admitir seu enorme valor, para ver se flui.  

terça-feira, 28 de março de 2017

2017: Centenário de Mestre Didi






Efêmeros e Eternos | Material e Imaterial


Com que delicadeza devo encontrar a leveza de Mestre Didi?

Quando filmo sua obra colocada em praça pública, no Rio Vermelho, indo à casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, encontrar o que de mais belo houve na rede de relações que possibilita a Bahia entender e fazer sua modernidade, faço um elo com a passagem do centenário em 2016 de Zélia Gattai de Ewa, senhora das transmutações para o  artista-sacerdote que nesse 2017 alcança seus 100 anos. Um elo com esse tempo-espaço que vai se constituindo com o século @ também dito XXI, onde teremos de cuidar da eternidade do nosso passado recente, pois é o que mais de perto nos constitui.

 Encanta-me pensar o fazer artístico tanto no conceitual como no artesanal, de um ser naturalmente herdeiro do sacerdócio dos cultos afrodescendentes no Brasil. Só de saber que  Mestre Didi, é filho de Mãe Senhora, fundadora do Axé Opó Afonja, me ponho na certeza indissolúvel de como o tempo nos trará entendimentos, ainda mais potentes na sustentabilidade da nossa civilização. Porque me convenci, que apesar de toda a dor, a melhor ambição ainda é essa, e ela conta com o auxilio, fundamental da percepção humana, que nos possibilita a África. Na hora de sustentar as ondas mais pesadas, sempre contamos com ela.

Nesse ano transito por este ser encantado que se fez sacerdote dos eguns, dos espíritos imortais, me deixando levar nessa espiral do tempo, onde ano a ano vejo forças indiscutíveis que nos formaram artística e culturalmente se apresentarem e com elxs uma cosmologia nos faz nação.




2016: Centenário de Zélia Gattai


No tempo a partir das Serpentes somos anarquistas graças a Oxalá.

O tempo a partir das serpentes é uma trilogia em pintura: À noite, sua imensa vastidão cheia de mistérios, a possibilidade da total escuridão, a morte que dá lugar a aurora, momento único em que reluz mercúrio, e faz a passagem para a claridade solar do dia. São inseparáveis e compõem uma só obra.

O centro é constituído do caduceu, símbolo clássico de Hermes, aqui realizado para Exu, o mito mais forte do hemisfério sul que corresponde em sua função de mensageiro ao senhor da economia do Norte. Reconhecendo nossa escala de desenvolvimento como outra, opto por re-significar o luxo. No aspecto formal busco um dialogo entre o fazer artesanal, o design, e a poética como função prioritária da arte de pintar.

À noite vista como ouroboros, um dos símbolos mais antigos onde configura a serpente, momento em que esta morde o rabo, representação de um tempo que fecha seu ciclo, o recolhimento.
O dia como um espiral arco íris compondo serpentes. Propriedades fundamentais dos Orixás Oxumaré e sua irmã gêmea Ewá, que representam respectivamente a prosperidade e a reprodução humana. Cobras corais são as serpentes favoritas desses Orixás, e por isso colocadas no Caduceu, desta vez para Exu.

Tenho o projeto Efêmero e Eterno, que pensa a memória nacional através de suas personalidades centenárias, e sendo este os 100 anos da escritora Zélia Gattai, senhora de Ewá, paulistana com longa vivência na Bahia, ao lado do também centenário escritor Jorge Amado, o tempo a partir das serpentes se fez. Com Zélia e sua Ewá, fui filmar as transformações urbanísticas do bairro Rio vermelho, e a casa modernista nesse lindo bairro, onde o casal viveu em Salvador. 


Essa cartografia audiovisual chamo de Anarquistas Graças a Oxalá, pois depois de apreender o elegante e divertido universo dos escritores através da sua Casa do Rio Vermelho, e de divagar pelas praças e ruas recentemente transformadas, fica um tom irônico pelos descuidados com o rio que desemboca ao lado da hoje Vila Caramuru, onde antes ficava o Mercado do Peixe, que foi gentrificado para dar lugar ao empreendimento, que muito lembra as praças de alimentação de Shopping Center, transplantada para uma área ao ar livre.  Creio que Zélia e Jorge, com o profundo respeito que tinham com as tradições populares, viriam com tristeza o espremido espaço que sobrou aos pescadores.